sexta-feira, 12 de outubro de 2012

AS MISÉRIAS DOS NÃO CONVERTIDOS




Alleine
         É tão indescritivelmente terrível o caso das almas não convertidas, que às vezes tenho pensado que se eu, pelo menos, pudesse convencer os homens de que ainda não estão regenerados, metade da tarefa já estaria realizada.
         Mas tenho descoberto por meio de tristes experiências, que os não santificados possuem tal espírito de apatia e de sonolência que, embora convencidos de não serem regenerados, permanecem sossegadamente descuidados. Através do amor ao prazer sensual, ou do apego aos negócios mundanos, ou do ruído e clamor das preocupações terrenas e afeições carnais, a voz da consciência é abafada e os homens não ultrapassam alguns frios desejos e propósitos frouxos de se arrependerem e de se corrigirem.
         É, portanto, da maior importância que eu não apenas convença os homens de que não são convertidos, mas também que me esforce para levá-los a sentir a terrível miséria do seu estado.
         Mas aqui encontro-me embaraçado logo de início. Quem poderá falar o bastante aos herdeiros do Inferno a respeito da sua miséria, senão o homem rico (da parábola do rico e Lázaro) que estava atormentado naquela chama? (Lucas 16:24). Onde está o hábil escritor cuja pena possa descrever as misérias daqueles que estão sem Deus no mundo? Isso não pode ser feito por completo, a menos que conheçamos o infinito oceano de felicidade que há na perfeição de Deus e do qual os homens estão excluídos devido ao seu estado pecaminoso. "Quem conhece", diz o salmista, "o poder da Tua ira?" (Salmo 90:11). E como vou falar aos homens daquilo que não conheço? Contudo, sabemos o suficiente para acreditar que o coração daquele que possui o mínimo grau de vida ou sentido espiritual ficaria abalado.
         Mas esta dificuldade é ainda mais espantosa, pois tenho de falar aos que não têm nenhum sentido espiritual. Infelizmente esta não é a pior faceta da miséria do homem, isto é, que ele esteja morto em transgressões e pecados.
         Se eu pudesse dar uma visão do Paraíso ou representar o Reino do Céu com tanta perícia como o tentador apresentou os reinos do mundo e a sua glória ao nosso Salvador, ou se eu pudesse desvendar a face do profundo e devorador abismo de Tofeth com todos os seus terrores, e abrir as portas da fornalha infernal, infelizmente esse homem não teria olhos para ver. Se eu pudesse pintar as belezas da santidade ou a glória do Evangelho, ou se eu pudesse expor a mais que diabólica deformidade e feiura do pecado, ele não conseguiria perceber o encanto e a beleza da primeira nem a impureza e hediondez da segunda, melhor que um cego o poderia fazer. Ele está alienado da vida de Deus pela ignorância que há nele, pela cegueira do seu coração (Efésios 4:18). Ele não conhece nem pode conhecer as coisas de Deus, porque elas são discernidas espiritualmente (I Coríntios 2:14). Seus olhos não podem ser abertos para a salvação, senão pela graça que converte (Atos 26:18). É filho das trevas e anda nas trevas. Sim, a luz que está nele são trevas.
         Deverei, então, fazer soar soturnamente a sua má sorte, ou ler a sua sentença, ou fazer soar em seu ouvido a terrível trombeta do julgamento divino, pensando que isso faria vibrar os seus ouvidos, e alarmá-lo como aconteceu com Belsazar, até mudar o seu semblante, relaxar suas juntas e seus joelhos baterem um no outro? Que pena, ele não me ouviria, ele não tem ouvidos para ouvir. Ou deverei chamar as filhas da música e cantar o cântico de Moisés e do Cordeiro? Nem assim ele se vai comover. Deverei cativá-lo com o som jubiloso, a encantadora canção e as boas novas do Evangelho, com os mais doces e atraentes chamamentos, com as consolações e confortos das promessas divinas, tão admiravelmente grandes e preciosas? Isso não o atingiria de modo salvador, a menos que eu conseguisse ouvidos para ele, assim como o fizesse ouvir as novas.
         O que fazer então? Deverei mostrar-lhe o lago que arde com fogo e enxofre, ou abrir-lhe a caixa de nardo puro, tão precioso, que enche o mundo todo com o seu perfume, e esperar que o aroma balsâmico de Cristo e o cheiro de Suas vestimentas o atraiam? Lastimavelmente, pecadores mortos são como ídolos mudos: têm bocas, mas não falam; têm olhos, mas não veem; têm ouvidos, mas não ouvem; têm narizes, mas não cheiram; têm mãos, mas não apalpam; têm pés, mas não andam; nem som algum sai da sua garganta. São destituídos de sentimento e ação espirituais.
         Mas deixem-me tocar nos seus sentidos e desembainhar a espada da Palavra; contudo, mesmo escolhendo as minhas flechas na aljava de Deus e lançando-as sobre o coração, ele não as sentirá, pois como poderia sentir, visto que perdeu todo o sentimento? (Efésios 4:19). Portanto, apesar da "ira de Deus habitar nele", como também o enorme peso de muitos pecados, ele se acha à vontade como se coisa alguma o afligisse. Em suma, carrega um corpo morto num corpo vivo e a sua carne nada mais é do que o esquife ambulante de uma mente corrupta, duas vezes morta (Judas 12).
         Qual o caminho que deverei seguir, então, para chegar até ao miserável objeto com o qual tenho de tratar? Quem poderá fazer o coração de pedra comover-se ou fazer a carcaça sem vida sentir e mover-se? O Deus que é capaz de suscitar das pedras filhos a Abraão, que ressuscita os mortos, que liquefaz as montanhas, que faz brotar água da rocha, que gosta de operar além das esperanças e da fé do homem, que povoa a Sua Igreja a partir de ossos secos —Ele é capaz de fazer isso. Portanto, ajoelho-me diante do Deus altíssimo, e como nosso Salvador orou junto ao sepulcro de Lázaro, como a sunamita correu para o homem de Deus a implorar pelo filho morto, assim os seus ministros os levam nos braços da oração para aquele Deus em quem se encontra o seu auxílio.
         "Ó Todo-Poderoso Jeová, que operas e ninguém pode impedir-Te; Tu, que tens as chaves da morte e do Inferno, compadece-Te das almas mortas que aqui fazem sepultadas, e remove a pedra do sepulcro e fala como falaste ao corpo morto de Lázaro: "Sai para fora!" Ilumina essas trevas, ó Luz inacessível, e permite que a Aurora do Céu visite as regiões tenebrosas dos mortos aos quais eu falo; porque Tu podes abrir os olhos que a própria morte fechou. Tu, que formaste o ouvido, podes restaurar a audição; diz a estes ouvidos: "Efata" e eles se abrirão. Dá-lhes olhos para que vejam as Tuas excelências; paladar para que saboreiem a Tua doçura; olfato para que se deleitem com o Teu aroma; habilidade para que possam discernir o privilégio da Tua graça, o peso da Tua ira, o peso intolerável do pecado não perdoado; manda o Teu servo profetizar aos ossos secos, e permite que os efeitos dessa profecia sejam iguais aos do Teu profeta quando ele profetizou no vale de ossos secos, os quais se transformaram num exército vivo, grande em extremo."
         Mas preciso continuar, da maneira melhor que posso, a desvendar aquela miséria que nenhuma língua pode desvendar e nenhum coração pode compreender suficientemente. Saibam, portanto, que enquanto vocês não forem convertidos: (continua)

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