segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Necessário nos é nascer de novo (continuação)




Martinho Lutero
2. Só a regeneração nos dá parte na salvação eterna.
         É-nos dito, pois: "Necessário te é nascer pela segunda vez." A Nicodemos, isto pareceu-lhe chocante. Ele pensava em outras leis, posteriores ao marco das leis mosaicas, como as achamos no papado e no judaísmo farisaico; esperava que Cristo estabeleça artigos novos, leis novas, todo um código novo. Mas nada disto: Cristo não diz uma palavra quanto a novas leis e estatutos. "Pois o que tendes em matéria de leis, já é mais do que podeis cumprir. Eu, por outro lado, prego-vos assim: Vós, vós mesmos tendes de chegar a ser outra gente. Eu não falo de fazer ou não fazer, mas de vir a ser. Tu tens de vir a ser outro homem, tens de nascer de novo. Isto será então a justiça que dá no alvo, a justiça sem mancha nem ruga, a justiça que conseguirá entrar no céu."
         Ao ouvir a Jesus falar desta maneira, vêm a Nicodemos certas dúvidas. Isto são palavras novas para ele. "Entrar, eu, pela segunda vez, no ventre de minha mãe? Tolices!" Mas a estas tolices, Cristo acrescenta outras piores: "Não te digo que tenhas de nascer de novo de pai e mãe humanos, mas da água e do Espírito Santo." Agora, Nicodemos fica confundido de todo: "Que homem e mulher são estes: água e Espírito?" E, como se ainda não fora suficiente, Cristo pergunta: "És tu mestre em Israel, e não sabes isto?", o que soa a manifesta brincadeira. E, entretanto, Cristo tem de falar assim, porque o tema é para o Nicodemos completamente novo. Para o esclarecer Cristo recorre a uma ilustração, como querendo dizer a Nicodemos: "Queres que faça um desenho para que o entendas? Digo-te porém: se não podes captar isto com a razão, capta-o com a fé. Pois se não crês se te tenho dito coisas terrestres, como crerás se te disser as coisas celestiais? Nós falamos o que sabemos, e o que sabemos é a verdade; e vós não credes. E então: se alguém não quer crer, largue-se!"
         A nossa pregação, iniciada naquele tempo por Cristo, estriba-se exclusivamente na fé. Só com a fé podes compreender isto da "regeneração pela água e o Espírito Santo". O Espírito é o varão, a água é a mulher. O que isto implica, não o podes medir com a tua razão. Daí que o nosso tema que pregamos, seja o artigo das boas obras e da fé. E já os papistas aprenderam algo de nós ao dizerem que com a fé e a graça começa a vida verdadeiramente cristã. Antes só se falava da missa privada e da invocação dos santos; agora, por outro lado, dizem que a fé, com efeito, salva, mas não a fé sozinha, mas a fé em cooperação com as nossas obras; essa cooperação, sustentam, é imprescindível. E a nós criticam-nos duramente afirmando que proibimos as obras e induzimos os homens à desídia. Ainda lhes falta bastante para ser tão piedosos e estar tão perto da verdade como Nicodemos.
         Nós nunca proibimos as boas obras; mais ainda: se dissermos algo a respeito de boas obras, a nossa própria gente perde as estribeiras, o que é um claro sinal de que realmente pregamos sobre este tema. E apesar disso, os papistas continuam blasfemando de nós. Eles ensinam: “As boas obras têm de vir em ajuda da fé" — vãs palavras que demonstram que esses mestres não têm noção do que é a fé, as boas obras, o nascer do Espírito, o nascer de Deus. É, portanto, muito necessário que estudemos com cuidado o nosso presente versículo (João 3:5) e outros similares. Aqui fala-se de "nascer de novo", não de "fazer algo novo".          Primeiro deves plantar a árvore, logo terás, também, frutos. Conforme seja a árvore, boa ou má, também os frutos serão bons ou maus. O mesmo acontece aqui. Nós a isso chamamos um novo nascimento, quer dizer, uma nova maneira de ser, uma nova pessoa, não somente um novo vestido ou novas obras. Quando eu era monge, a minha vestimenta era distinta, e as minhas obras também o eram; as sete horas para as orações, a missa, a crisma, o celibato — todas estas eram outras obras, muito dissimiles das minhas obras anteriores. Mas a simples mudança das obras não é o que vale; que mude a pessoa, que mudem os pensamentos e o ânimo: este é o novo nascimento.
         Portanto, não se podem justapor as obras à fé. Com o que contribui um menino que seja engendrado e dado à luz? Isto é obra dos pais; o menino não faz nada para que as suas perninhas e todos os seus membros cresçam; não é parte ativa neste processo de crescimento mas parte meramente passiva. Qual foi, neste sentido, o nosso contributo? Onde estão as obras cooperantes? Queria saber então a razão porque vem essa insistência em que se devem adicionar também as obras, e desde logo as nossas próprias obras!
         É verdade: a mãe leva a criatura nas suas entranhas e dá-lhe o calor materno; entretanto, não é obra desta criatura que ela se origine. De igual maneira, aqueles que pregamos e batizamos somos nós; e, entretanto, a palavra e o batismo não são nossos; só pomos a nossa boca e as nossas mãos à disposição. Na verdade, o batismo e a palavra são de Deus, e não obstante, nós somos chamados colaboradores de Deus (1 Coríntios 3:9). É, por certo, uma colaboração bastante modesta a nossa; não que contribuamos com a obra ou a palavra; o que unicamente contribui ao pregar e batizar é a voz, são os dedos, a boca.
         Assim, no engendramento de uma criatura, o pai e a mãe só contribuem com a sua carne e sangue, como fatores deles; a criatura, por outro lado, não contribui com absolutamente nada, mas que “deixa criar” por Deus todos os membros, e a mãe a leva no seu seio. Há alguma razão, então, para que eu tire a Deus a honra e diga que eu mesmo me engendrei, e que o meu próprio atuar contribuiu para que eu nascesse? Não significaria isto ofender a Deus? Acaso não somos chamados Seus filhos, obra de Suas mãos? Se é verdade que as obras colaboram na regeneração, vejo-me obrigado também a dizer que eu colaborei com Deus — e isto é uma blasfêmia contra Deus.
         Mas se é verdade que eu sou nascido de novo, como diz Cristo, não tenho de colaborar com nada, mas tenho de permanecer quieto e passivo para que Aquele que é meu Pai e Criador me faça nascer de novo como Seu filho. Neste sentido declara o apóstolo Paulo que "nós somos uma nova criação, criados em Cristo para as boas obras". Como se vê, Paulo não esquece as boas obras. Mas menciona-as não porque tenham contribuído com algo, não porque elas sejam as que produzem a nova criação, mas "para que andássemos nelas".
         Se é certo que as minhas próprias obras contribuem para que eu seja uma nova criação, bem me posso gloriar de ser o meu próprio Deus; porque o criar é obra de Deus exclusivamente. Se colaboro, então Deus não é meu único Deus, mas que eu também o sou. Por outro lado, se Ele é o único, não o posso ser eu também, como se afirma muito claramente no Salmo: "Foi Ele, e não nós, que nos fez povo Seu e ovelhas do Seu pasto". E, não obstante, certa gente incorre na tremenda tolice de sustentar que a fé engendra homens novos, mas com ajuda das obras. Mas carece de toda lógica dizer que eu me crio a mim mesmo e sou Deus junto com Deus, de modo que Ele me tem a Seu lado como um Deus adjunto.
         Assim como eu não me formei a mim mesmo no corpo de minha mãe, mas foi Deus quem me formou valendo-se dos membros e do calor de minha mãe, assim tampouco na regeneração somos gerados mediante as nossas próprias forças e obras, mas unicamente pelas mãos e pelo Espírito de Deus. Em consequência, é ilícito acrescentar obras à fé; em caso contrário, não é Deus só o que me cria, mas que eu sou, simultaneamente com Ele, o meu próprio criador. Para o fogo do Inferno um criador que se cria a si mesmo! A Escritura chama-me uma nova criação de Deus, e não obstante, eu, então, ter-me-ia de atribuir a nova criação a mim mesmo? Desse modo, eu seria criação e criador, obra e obreiro, numa mesma pessoa. Claramente, estes são pensamentos diabólicos e ensinos de homens enceguecidos. Devemos ater-nos, por assim dizer, estritamente ao que aqui nos ensina o evangelista São João.
         Também Paulo nos chama "novas criaturas". Da mesma maneira, pois, como eu não faço nenhum contribuição para o meu nascimento corporal e engendramento, mas que sou parte meramente passiva e 'faço-me' engendrar e criar, desta mesma maneira tampouco as obras fazem contribuição alguma para que o homem seja regenerado. Não sendo assim, Deus já não será só Ele Deus, mas nós seremos Deus junto com Ele, e seremos nossos próprios progenitores. Mas quando a criatura já está engendrada, e quando o bebê já está formado no seio materno com todos os seus membros, a mãe diz: “Sinto que o bebê faz as obras que em seu estado pode fazer." Mas só o já criado dá estes sinais da sua existência, e só quando tenha sido dado à luz mexe os seus membros, e se fica com vida, aprende a caminhar e a cantar. Mas se não tivesse sido criado previamente, agora não se mexeria.

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