sábado, 3 de novembro de 2012

OS MORTOS BEM AVENTURADOS




         Agora, como execução veemente desta exortação, eu tiraria lições proveitosas dessa dispensação aflitiva da providência santa de Deus, que é a ocasião de nossa reunião neste momento — a morte do eminente servo de Jesus Cristo, cujo enterro deve ser cuidado neste dia. juntamente com o que era observável nele, na vida e na morte.
         Nesta dispensação da providência, Deus nos faz lembrar da nossa mortalidade e nos avisa que o tempo está próximo, quando então estaremos “ausentes do corpo” e “devemos comparecer”, como o apóstolo observa dois versículos mais à frente no texto: “Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem ou mal” (2 Coríntios 5:10).
         Nele, cuja morte somos chamados a considerar e tirar lições proveitosas, temos não só uma instância de mortalidade, mas também, como possuímos toda razão imaginável para concluir, uma instância de alguém que, estando ausente do corpo, está presente com o Senhor. Disto ficaremos convencidos se considerarmos a natureza da experiência na ocasião de sua conversão, a natureza e curso dos exercícios interiores a partir daquela data, sua conversação exterior e prática de vida, ou a estrutura e comportamento durante todo o longo tempo em que ele encarou a morte frente a frente.
         Suas convicções de pecado que precedem suas primeiras consolações em Cristo, como consta num relato escrito que ele deixou dos exercícios e experiências interiores, eram sumamente profundas e completas. Suas dificuldades e tristezas que surgem de um senso de culpa e miséria eram muito grandes e continuamente longas, mas, não obstante, sãs e racionais, não consistindo em pavores instáveis, violentos e irresponsáveis e perturbações da mente; mas surgindo das mais sérias considerações e de uma iluminação clara da consciência para discernir e considerar o verdadeiro estado das coisas.
         A luz entrou em sua mente na conversão, e as influências e exercícios para os quais sua mente foi sujeita naquele momento mostram-se muito agradáveis à razão e ao Evangelho de Jesus Cristo. A mudança foi muito grande e notável, contudo sem a aparência de impressões fortes na imaginação, de voos súbitos de afetos ou de emoções veementes da natureza animal. Isso foi assistido com visões justas da suprema glória do Ser divino, consistindo na dignidade e beleza infinitas das perfeições da sua natureza e da excelência transcendente do caminho de salvação por Cristo Jesus. Isto sucedeu cerca de oito anos atrás, quando ele tinha vinte e um anos de idade.
         Deus santificou e formou para seu uso este vaso, que Ele designou fazer eminentemente um vaso de honra na sua casa e o qual fizera de grande capacidade, dotando-o de habilidades e dons naturais muito incomuns. Ele era instância singular de uma invenção pronta, eloquência natural, expressão fluente, apreensão vivaz, discernimento rápido, memória forte, génio penetrante, pensamento profundo e claro e juízo perspicaz. Ele tinha um discernimento exato; sua compreensão era, se posso expressá-la, de um faro rápido, forte e distintivo; sua aprendizagem era muito considerável. Ele tinha grande gosto em aprender e se aplicava aos estudos de maneira tão íntima quando estava na faculdade, que muito lhe prejudicou a saúde e foi obrigado, por conta disso, durante algum tempo, a deixar a faculdade, desistir de seus estudos e voltar para casa. Ele era reputado alguém que excedia em aprendizagem naquela sociedade.
         Ele tinha conhecimento extraordinário das pessoas, como também das coisas, e perspicácia incomum da natureza humana. Excedia muitos que já conheci no poder de comunicar os pensamentos e tinha talento peculiar de acomodar-se às capacidades, temperamentos e circunstâncias daqueles a quem instruía ou aconselhava.

Ele tinha dons extraordinários para o púlpito. Nunca tive oportunidade de ouvi-lo pregar, mas muitas vezes o ouvi orar. Acho que sua maneira de se dirigir a Deus e de se expressar diante Dele era quase inimitável, fato que raramente vi igual. Ele se exprimia com propriedade e pertinência exatas em expressões significantes, fluentes e pungentes, com tamanha demonstração de sinceridade, reverência e solenidade, e tão grande distância de toda afetação, quanto a esquecer a presença da audiência e estar na presença imediata de um grande e santo Deus, que poucas vezes vi paralelo. Seu modo de pregar, sobre o qual muitas vezes ouvi bons juízes referirem-se, era não menos excelente, sendo claro, instrutivo, natural, vigoroso, comovente, penetrante e convincente.
         Ele repugnava o ruído afetado e a impetuosidade violenta no púlpito, e, contudo tinha grande aversão de uma entrega tediosa e fria, quando o assunto requeria afeição e avidez. Suas experiências das influências santas do Espírito de Deus foram grandes não só primeiramente na conversão, mas também continuaram assim num curso permanente. Este facto evidencia-se num diário que ele mantinha de seus exercícios interiores desde o tempo em que se converteu até o momento em que ficou incapacitado pela queda de forças poucos dias antes de morrer. A mudança que ele estimava como sua conversão foi não só uma grande mudança de suas visões, afetos e estrutura de pensamento, mas, evidentemente, o começo dessa obra de Deus no seu coração, que Deus continuou fazendo de maneira muito maravilhosa desde aquele tempo até o dia em que morreu.
 Assim como seu aspecto interior mostrou-se ser do tipo certo e era muito notável quanto ao grau, seu comportamento e prática externas eram igualmente agradáveis. Em toda a sua trajetória, ele agiu como alguém que tinha vendido tudo por Cristo, dedicado-se completamente a Deus, feito a glória Dele o seu mais alto fim e estava determinado a gastar todo o tempo e força neste propósito. Ele era ativo na religião da maneira certa, não meramente ou principalmente em sua língua, para professá-la e falar dela, mas ativo na obra e matéria da religião. Ele não era um daqueles que procuram esquivar-se da cruz para alcançar o céu na indulgência da facilidade e indolência. São provavelmente sem paralelo hoje em dia nesta parte do mundo sua vida de labor e abnegação, os sacrifícios que fez e a prontidão e constância com que despendeu suas forças e todo o seu ser para promover a glória do Redentor. Muito disso pode ser percebido por aquele que lê seu jornal impresso, porem muito mais se aprendeu através de longas e estreitas relações com ele e examinando o diário desde sua morte, o qual ele de propósito escondeu no que publicou.
 Não menos extraordinário era sua constante tranquilidade, paz, certeza e alegria em Deus, durante o longo tempo em que olhava a morte face a face sem a menor esperança de recuperação, continuando sem interrupção até os últimos momentos em que a enfermidade muito sensivelmente atacava dia a dia seus órgãos vitais e muitas vezes o levava ao estado no qual ele se considerava — e outros também — estar morrendo. Os pensamentos da aproximação da morte nunca pareciam ao menos desalentá-lo, mas antes o encorajavam e divertiam-lhe o humor. Quanto mais perto a morte chegava, mais desejoso ele parecia de morrer. Pouco tempo antes de morrer, ele disse que “a consideração do dia da morte e o Dia do Juízo há muito tinha[lhe] sido peculiarmente doce.”

Ele parecia ter extraordinários exercícios de resignação à vontade de Deus. Certa vez, ele me contou que “Tinha ansiado pelo derramamento do Espírito Santo de Deus e pelos tempos gloriosos da Igreja e esperado a sua proximidade; e desejaria viver para promover a religião nesta época, se essa tivesse sido a vontade de Deus.” “Mas”, disse ele, “estou propenso que as coisas sejam como são; nem por dez mil mundos eu não teria a escolha de fazer sozinho.”
 Com frequência ele falava dos diferentes tipos de vontade de morrer, e mencionava como algo ignóbil e vil a vontade de morrer, por estar propenso a morrer só para se livrar da dor, ou ir para o céu a fim de receber honra e promoção. Seu desejo da morte parecia ser de um tipo totalmente diferente e para fins mais nobres. Quando foi tomado pela primeira vez com um dos últimos e mais fatais sintomas da doença, ele disse: “Agora o tempo glorioso está chegando! Almejei servir a Deus perfeitamente e Deus satisfará esse desejo.” Uma vez ou outra na fase final de sua enfermidade, ele articulou estas expressões: “Meu céu é agradar a Deus, glorificá-lo, dar tudo a Ele e ser dedicado completamente à sua glória. Este é o céu que desejo, esta é a minha religião, esta é a minha felicidade e sempre foi, desde que supus ter a verdadeira religião. Todos os que são dessa religião me encontrarão no céu.” “Eu não vou para o céu para ser promovido, mas para dar honra a Deus. É de pouca importância onde serei posicionado no céu, se tenho um assento alto ou baixo, mas vou amar, agradar e glorificar a Deus. Se eu tivesse mil almas, se elas valessem algo, eu as daria todas a Deus. Mas não tenho nada a oferecer quando tudo terminar.”
 Depois que seu estado o deixou tão prostrado que já não tinha a menor esperança de recuperação, sua mente vislumbrou o futuro com zelosa preocupação pela prosperidade da Igreja de Deus na terra. É mais do que evidente que isto é proveniente de um amor puro e desinteressado de Cristo e um desejo de sua glória. A prosperidade de Sião era um tema no qual ele se demorava muito e do qual muito falava, e cada vez mais assim que a morte se aproximava dele. Quando estava perto do fim, ele me contou que nunca, em toda a vida, teve a mente induzida a desejos e orações sérias pelo florescimento do Reino de Cristo na terra, quanto desde que ficou extremamente prostrado em Boston. Ele parecia se perguntar por que os ministros e as pessoas não manifestavam mais a disposição de orar pelo desenvolvimento da religião por todo o mundo.
 Mas pouco antes de morrer, ele me contou quando entrei no quarto: “Meus pensamentos estavam no querido velho tema: a prosperidade da Igreja de Deus na terra. Enquanto eu acordava, fui levado a chorar pelo derramamento do Espírito de Deus e o progresso do Reino de Cristo, pelo qual o querido Redentor morreu e tanto sofreu. É sobretudo isso que me faz desejar muito a prosperidade da Igreja de Deus na terra.”
 Alguns dias antes de morrer, ele quis que cantássemos um salmo relacionado à prosperidade de Sião, que ele denotou ter engajado seus pensamentos e desejos acima de todas as coisas. A seu pedido, cantamos parte do Salmo 102. Quando terminamos, embora estivesse tão prostrado que mal podia falar, ele se esforçou e fez uma oração, muito audivelmente, na qual, além de pedir pelos presentes e pela própria congregação, orou solicitamente pelo avivamento e florescimento da religião no mundo. Sua congregação tem lugar especial em seu coração. Era frequente ele falar dela e, quando o fazia. era com ternura peculiar, de forma que sua fala era interrompida e afogada em lágrimas.
 Assim, propus-me a representar algo do caráter e comportamento deste excelente servo de Cristo, cujo sepultamento deve ser cuidado agora. Embora o tenha feito muito imperfeitamente, contudo empreendi fazê-lo com fidelidade e como na presença e temor de Deus, sem lisonja, o que seguramente deve ser de nenhum valor aos ministros do Evangelho, quando falam “como mensageiros do Senhor dos Exércitos.” Tal razão temos de satisfazer para que a pessoa de quem tenho falado, agora “ausente do corpo”, está “presente com o Senhor”, não apenas isso, mas também com ele está uma coroa de glória de brilho distinto.

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