terça-feira, 11 de setembro de 2012

JOB E OS SEUS AMIGOS (4)


E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles. Então o SENHOR disse a Satanás: Donde vens? E Satanás respondeu ao SENHOR, e disse: De rodear a terra, e passear por ela. E disse o SENHOR a Satanás: Observaste tu a meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desvia do mal. Então respondeu Satanás ao SENHOR, e disse: Porventura teme Jó a Deus debalde? Porventura tu não cercaste de sebe, a ele, e a sua casa, e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste e o seu gado se tem aumentado na terra. Mas estende a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face.” (Jó 1:6-11)
         Que cena temos aqui da malícia de Satanás! Que extraordinário testemunho da maneira como ele vigia e considera os caminhos e as obras do povo de Deus! Quão perfeitamente conhece o caráter humano! Que íntimo conhecimento possui da mente e do estado moral do homem! Que coisa terrível é cair nas suas mãos! Ele está sempre à espreita, sempre pronto — se Deus lho permite— a empregar todo seu maligno poder contra os cristãos.
         Que solene é pensar em tudo isto! Deveria induzir-nos a seguir uma senda humilde e vigilante no meio da cena onde Satanás exerce o seu domínio! Ele encontra-se absolutamente impotente frente a uma alma que permanece na dependência e obediência; e —bendito seja Deus— Satanás não pode, em nenhum caso, trespassar o limite traçado por prescrição divina. Assim aconteceu com o Jó: “E disse o SENHOR a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está na tua mão; somente contra ele não estendas a tua mão. E Satanás saiu da presença do SENHOR.” (Jó 1:12)
         Aqui, pois, é permitido a Satanás estender a sua mão sobre as possessões de Jó, de lhe arrebatar os seus filhos e de o despojar de todas as suas riquezas. E certamente não perdeu um instante para levar a cabo a sua obra. Com notável rapidez cumpriu a sua missão. Um golpe atrás de outro caía sucessivamente sobre a cabeça do devoto patriarca. Com muita dificuldade um dos seus mensageiros lhe pôde transmitir a sua triste notícia; em seguida aparece outro com uma notícia ainda mais terrível, até que por fim o aflito servo de Deus “levantou-se, e rasgou o seu manto, e rapou a sua cabeça, e lançou-se em terra, e adorou. E disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou: bendito seja o nome do SENHOR. Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma.” (Jó1:)
         Tudo isto é profundamente comovedor. Ser privado santamente dos seus dez filhos e logo rebaixado das riquezas principescas à penúria absoluta, era, humanamente falando, motivo suficiente para cambalear. Que notável contraste entre as primeiras e as últimas linhas do primeiro capítulo! Ao princípio, vemos o Jó rodeado de uma numerosa família, e gozando das suas muitas posses; enquanto que, no último, vemo-lo abandonado, sumido na pobreza e na nudez. E pensar que foi Satanás quem — com permissão, e inclusive por incumbência de Deus— o tinha reduzido a este estado! E para que se fez tudo isto? Para o proveito permanente e profundo da preciosa alma de Jó. Deus via que o Seu servo precisava de aprender uma lição; e considerava, além disso, que tal lição só podia ser ensinada  fazendo passar a Jó por uma prova penosa —por um ordálio — cuja simples menção enche a mente de solene temor. Deus não deixará de ensinar aos Seus filhos, ainda que tivesse que despojá-los de tudo a que o coração se apega neste mundo.
         Mas devemos seguir o nosso patriarca em águas ainda mais profundas. “E, vindo outro dia, em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles, apresentar-se perante o SENHOR. Então o SENHOR disse a Satanás: Donde vens? E respondeu Satanás ao SENHOR, e disse: De rodear a terra, e passear por ela. E disse o SENHOR a Satanás: Observaste o meu servo Job? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e recto, temente a Deus e que se desvia do mal, e que ainda retém a sua sinceridade, havendo-me tu incitado contra ele, para o consumir sem causa. Então Satanás respondeu ao SENHOR, e disse: Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida. Porém estende a tua mão, e toca-lhe nos ossos, e na carne, e verás se não blasfema contra ti na tua face! E disse o SENHOR a Satanás: Eis que ele está na tua mão; porém guarda a sua vida. Então saiu Satanás da presença do SENHOR, e feriu a Jó de úlceras malignas, desde a planta do pé até ao alto da cabeça. E Jó tomou um caco para se raspar com ele; e estava assentado no meio da cinza. Então sua mulher lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre. Porém ele lhe disse: Como fala qualquer doida, falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal? Em tudo isto não pecou Jó com os seus lábios.” (Jó 2:1-10)
         Este é uma passagem muito notável. Instrui-nos sobre o lugar que ocupa Satanás em relação com o governo de Deus. Ele não é mais que um instrumento; e, embora esteja sempre pronto para acusar o povo de Deus, não pode fazer nada senão só o que Deus lhe permite. Os seus esforços, no que a Jó dizem respeito, viram-se frustrados e, depois de esgotar os seus últimos recursos, desaparece, e não ouvimos mais nada a respeito das suas manobras no resto do livro, quaisquer que pudessem haver sido as suas intenções. Jó deu amostras de que pôde guardar a sua integridade; e, se as coisas tivessem terminado aqui, a sua paciência nos sofrimentos não teria feito outra coisa que robustecer as raízes da sua própria justiça e alimentar a sua auto-satisfação. “Ouvistes” —diz Tiago— “qual foi a paciência de Jó, e vistes o fim que o Senhor lhe deu; porque o Senhor é muito misericordioso e piedoso” (Tiago 5:11).
         Se tivesse tratado simplesmente de uma questão de paciência de Jó, ele teria tido assim mais motivos para continuar confiando em si mesmo, e “o fim do Senhor” não se teria alcançado. Pois —e nunca o esqueçamos— a misericórdia e a compaixão do Senhor só podem ser achadas de bem por aqueles de espírito contrito e coração quebrantado. Agora bem, Jó não podia ser contado entre estes, por mais que estivesse sentado no meio das cinzas. Ele ainda não tinha quebrado por completo a sua cerviz diante de Deus. Ainda era o grande homem — tão grande nos seus infortúnios quanto o fora nos tempos de sua prosperidade—; tão grande sob os ventos violentos e erosivos da adversidade quanto o era sob o sol radiante dos seus melhores e mais esplendorosos dias. O coração de Jó não tinha sido ainda alcançado. Não estava ainda preparado para exclamar: “Eis que sou vil” (Jó 40:4) nem tinha aprendido ainda a dizer: “Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42:6).
         Estamos desejosos de que o leitor capte com claridade este ponto. Constitui, em grande parte, a chave de todo o livro de Jó. O objetivo divino era expor aos olhos de Jó as profundidades do seu próprio coração, a fim de que aprendesse a deleitar-se na graça e na misericórdia de Deus, e não na sua própria bondade, a qual era “como a nuvem da manhã e como o orvalho da madrugada, que cedo passa.” (Oséias 6:4)
         Jó era um verdadeiro santo de Deus; todas as acusações de Satanás se arruinaram na sua própria cara; não obstante, Jó continuava sem ser um vaso vazio e, por tanto, não estava preparado para “o fim do Senhor”, esse fim bendito para todo coração contrito, um fim caracterizado pela misericórdia e a compaixão. Deus — bendito seja o Seu nome— não tolerará que Satanás nos acuse; mas Ele quer fazer-nos ver o que há no nosso coração, a fim de que nos julguemos a nós mesmos e aprendamos a desconfiar dos nossos próprios corações e a descansar na inquebrável firmeza de sua graça.
         Até agora vemos que Jó “retém a sua integridade”. Enfrenta com calma as terríveis aflições que Satanás lhe ocasionou com a permissão de Deus; e, além disso, rechaça o insensato conselho da sua mulher. Numa palavra, aceita tudo como proveniente da mão de Deus, e inclina a sua cabeça ante as Suas misteriosas dispensações.


Tradução de Carlos António da Rocha

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