Sermão de Agostinho
O patrimônio que o filho
recebeu do Pai é a inteligência, a mente, a memória, o engenho e tudo o que
Deus nos deu para que O conhecessem e Lhe déssemos culto. Tendo recebido este
patrimônio, o filho menor "partiu para um país muito distante".
Distância significa: o esquecimento de seu Criador. "Dissipou a sua
herança vivendo dissolutamente": gastando e não ajuntando;
malbaratando tudo o que tinha e não adquirindo o que não tinha, isto é,
consumindo toda sua capacidade em luxúria, em ídolos, em todo tipo de desejos
perversos, aos que a Verdade denominou meretrizes.
Não é de admirar que essa orgia acabasse
em fome. "Sobreveio àquela região uma grande fome"; fome não
de pão visível, mas da verdade invisível. E, por causa da fome, "foi
pôr-se ao serviço de um dos senhores daquela região": entenda-se o
diabo, o senhor dos demônios. Alimentava-se então das vagens dos porcos sem
poder saciar-se. Vagens são as vistosas doutrinas do mundo: servem para
ostentar, mas não para sustentar; alimento digno para porcos, mas não para homens:
próprias para dar aos demônios deleitação, mas não dar aos fiéis a
justificação.
Até que, por fim, tomou consciência do
lugar em que tinha caído; do quanto tinha perdido; Quem tinha ofendido e a quem
se tinha submetido. Reparai no que diz o Evangelho: "Entrando em si...";
primeiramente, voltou-se para si e só assim pôde voltar para o pai. Dizia
talvez: "O meu coração me abandonou (isto é: saí de mim
mesmo)" (Salmo 40,13); daí que fosse necessário, antes, voltar para si
mesmo e assim perceber que se encontrava longe do pai. É o que diz a Escritura
quando increpa a alguns, dizendo: "Voltai, pecadores, ao coração!
(isto é: voltai, pecadores, a vós mesmos!)" (Isaías 46,8). Voltando para
si mesmo, encontrou-se miserável: "Encontrei, diz ele, a tribulação e a
dor e invoquei o nome do Senhor" (Salmo 116,3-4). "Quantos
empregados, diz ele, há na casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu,
aqui, a morrer de fome!"
Levantou-se e voltou. Ele, caído por
terra depois de contínuos tropeços. O pai vê-o ao longe e sai-lhe ao encontro.
É dele que fala o Salmo: "Entendeste os meus pensamentos de longe"
(Salmo 139,2). Que pensamentos? Aqueles que o filho tinha no seu interior:
"Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra
o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a
um dos teus empregados". Ele ainda nada tinha dito, só pensava em
dizer. O pai, porém, ouvia como se o filho já o estivesse dizendo.
E assim se diz noutro Salmo: "Eu
disse: confessarei a minha iniquidade ao Senhor" (Salmo 32,5). Vede
como se trata ainda de algo interior a ele, de um mero projeto e, contudo,
acrescenta imediatamente: "E tu já perdoaste a impiedade de meu coração"
(Salmo 32,5). Quão próxima está a misericórdia de Deus daquele que a Ele se
confessa!
E o pai ordena que o vistam com a
primeira veste, aquela que Adão perdera ao pecar. Tendo recebido o filho em
paz, tendo-o beijado, ordena que lhe deem uma veste: a esperança de
imortalidade, conferida no ato de crer. Ordena que lhe deem um anel, penhor do
Espírito Santo; calçado para os pés, como preparação para o anúncio do
Evangelho da paz, para que sejam formosos os pés dos que anunciam a boa nova.
Estas coisas Deus faz através dos Seus
servos, isto é, os crentes. Acaso eles podem, por si próprios, dar veste, anel
e calçados? Não, apenas cumprem o seu ministério, desempenham o seu ofício;
quem dá é Aquele de cujo depósito e de cujo tesouro são extraídos estes dons.
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